Atravessa os séculos este dizer: Memento mori. Vindo do latim, carrega o significado de recordar a mortalidade. Lembrar-se da morte, lembrar-se de que, um dia, a existência findará e que aqui onde estamos só podemos ver a negrura do nada que é como aquele que precedeu nossa existência. Existimos como seres atravessados pelo nada fundante e pelo nada que finda; o nada do antes e do depois do existir.
Memento mori é um chamado para encarar a transitoriedade das coisas e nossa pequenez diante do tempo e da vida. É um chamado que encontra eco nos estoicos e nas doutrinas espirituais mais antigas. Martin Heidegger falou do homem como um ser-para-a-morte. Atravessado pelo Nada, o homem em sua atitude cotidiana evita pensar a morte, pensar a própria finitude. Foge dessa dimensão mais essencial de sua existência com subterfúgios que lançam na inautenticidade da existência, perdendo-se no ser do homem massa (Das Man), incapacitando seu olhar de ver aquilo que, antes de tudo, fá-lo ser o que é. Quando o homem, em momentos de introspecção, encontra-se diante do pensamento da morte e da própria finitude, é acometido por uma angústia que sussurra: há um fim. Quando em frente a essa condição, sobram-lhe duas eleições existenciais: ou dissipa aquele pensamento repetindo para si mesmo que sempre alguém morre, "mas não serei eu dessa vez", voltando para as preocupações cotidianas ou ele encara a própria finitude e encontra, nesse abismo, a oportunidade de uma existência autêntica. Quando aberto à segunda possibilidade, a meditação na própria finitude abre uma dimensão autêntica que, em poucas palavras, coloca-o diante da condição real de existir, de conhecimento pleno de que haverá seu fim e de que é responsável pelas próprias decisões. Há nisso uma condição temporal de assumir o próprio destino. Passa-se da neurótica fixação com o passado ou da ansiosa preocupação com o futuro para a eterna presença do presente, onde se existe e se escolhe existir; o ser assume sua posição como decisão e autenticidade. A morte, a consciência da própria finitude, abre a existência autêntica. Da mesma forma, os samurais acreditavam no valor de ter a morte sempre presente diante de si.
Meu objetivo ao introduzir com tanta simplicidade um tema tão complexo, é fazer uma breve reflexão sobre o dia de hoje, a Quarta-Feira de Cinzas e o início da Quaresma. Não é minha intenção formular algum tipo de pregação, pois eu mesmo sou muito aberto às questões espirituais, mas sim refletir indiretamente sobre a condição humana enquanto conto sobre minha experiência de hoje.
Ontem, acabava o carnaval. Como se com o fim desse ritual da carne estivesse sendo banido o calor do verão, o dia amanheceu nublado e mais frio que todos os precedentes neste ano. Era um vento gelado e úmido que soprava sobre ruas vazias e silenciosas. Hoje, o frio continua e se pode ver uma espécie de virada do ano; parte a estação quente e retorna a estação fria do recolhimento e do silêncio, Ao mesmo tempo, inicia esse período quaresmal que era tão respeitado antigamente e hoje pouco influencia na vida do homem comum.
A Quarta-feira de Cinzas marca o início desse período de jejum, privação e meditação voluntários. As cinzas têm como significado a lembrança da nossa morte, do fim da nossa conhecida existência, recordando que voltaremos ao pó e que a negação desse fator fundamental da Realidade é uma tentação perigosa na vida humana. Novamente, memento mori. Colocamo-nos diante da finitude de nossa existência, diante do mistério daquela escuridão tão assustadora que encobre o significado da palavra morte. Revigora-se o conhecimento da nossa mortalidade, situando-nos junto ao nosso lugar de direito na realidade, desmanchando as ilusões que nos atracavam com promessas vãs de eternidade em portos transitórios que seriam consumidos pelas marés mais tarde.
Assim, consciente de todo esse significado, decidi ir à missa da Igreja que frequento, a Igreja Greco-Católica Ucraniana. Naquele fim de dia, o céu nublado, o vento frio soprando e forçando todos a retirar do armário aquelas roupas de inverno que há meses não respiravam ar puro. Garoava fino. Já dentro daquela ampla igreja ornamentada por motivos étnicos, as vozes angelicais dos fiéis se elevavam em coro entoando canções no idioma eslavo, garantindo ao ambiente uma atmosfera mística que já não é mais encontrada na missa comum. Logo o padre começa as orações, todas em ucraniano. Vou acompanhando tudo com um livrinho que tenho e que apresenta toda a estrutura da missa daquele rito (Missa de São João Crisóstomo, a mesma seguida pela Igreja Ortodoxa). Vamos repetindo "hóspode pomêlui" (senhor, tenha piedade) e, em minha mente, correm pensamentos sobre a transitoriedade das coisas e a frágil natureza que incorporamos aqui nesse mundo sublunar. Comungamos. A celebração segue enquanto chuvisca lá fora e a luminosidade vai sumindo num lusco-fusco entristecido, porém real.
Acaba a celebração tradicional e tem início a via-sacra. Dentro da igreja mesmo, visita-se cada uma das 14 estações que narram a crucificação de Jesus e em cada uma o padre fala sobre o acontecimento nela retratado. Os fiéis, fazendo múltiplas vezes o sinal da cruz (sempre da direita para a esquerda!), entoam cânticos e orações em ucraniano e, por fim, prostram-se encostando a cabeça no chão em sinal de respeito. Assim segue a cada estação. Por fim, rezam-se as orações finais e, novamente, todos se prostram daquele modo que denota total respeito, sempre tendo em mente o mistério da morte e a crença no absoluto transcendente.
Saio de lá com a mente onde deveria estar. Meu ser presta respeito à vida e à existência como ela é, aceitando o destino transitório do todo. Sob aquele céu azul que já provocou o acendimento dos postes, parto em silêncio para casa em meio à garoa e ao frio, tendo em minha alma cravado aquele eterno dizer: Memento mori.
Caramba, @flaviusbusck! Que texto incrível, parabéns pela riqueza das informações e pela visão que deste para esses eventos que nem paramos para pensar sobre a sua origem e significado. Já havia lido sobre o Carnaval ser uma festa com origem religiosa e sou fascinado pela história de cada cultura, muito obrigado por compartilhar ;)
Muito obrigado, @casagrande !
A gente sabe muito pouco sobre todo o mundo simbólico que nos roda, há coisas incríveis escondidas nos mais pequenos hábitos :)
Parabéns, seu post foi votado e compartilhado pelo projeto Brazilian Power, cuja meta é incentivar a criação de mais conteúdo de qualidade, conectando a comunidade brasileira e melhorando as recompensas no Steemit. Obrigado!
Obrigado!
Excelente texto. Fez-me lembrar um quadro de um pintor italiano Salvator Rosa, intitulado L'Umana Fragilità.
Obrigado!
Bela pintura. Há muitos exemplos na arte que remontam ao conceito de memento mori e também ao da vanitas, da vaidade humana, mostrando esqueletos e caveiras como uma lembrança de que um dia nós morreremos. Não conhecia essa que você mandou, mas gostei bastante. Partindo do nome que invoca a fragilidade humana, podemos associá-lo ao contraste retratado entre a vida adulta e a infância.
Muito bacana o post! Parabéns! (;
Muito obrigado!
Obrigado!
Meu amigo, que texto poderoso! Muito poderoso. Não só pela descrição do conceito como pela sua análise a respeito e o relato da missa. Obrigado por compartilhar!
Muito obrigado, meu caro! Sei que você sabe apreciar bem os relatos dessa natureza. Fico contente que tenha gostado!
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